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O que já se sabe sobre o impacto da lama de Mariana?

Camilla CostaDa BBC Brasil em São Paulo

Foto: Marcos Ummus | BBC Brasil

Um mês e meio após o rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco em Mariana (MG), faltam dados consolidados sobre o número total de pessoas afetadas pelo que é considerado o maior desastre da história da mineração mundial.

O colapso da barragem de Fundão causou o transbordamento de outra barragem, a de Santarém. O incidente liberou cerca de 60 milhões de metros cúbicos de lama, que destruiu distritos da cidade de Mariana e escorreu ao longo dos quase 700 km entre o local da ruptura e a foz do rio Doce, no Espírito Santo, causando danos ambientais e sociais.
No entanto, as estimativas sobre o real número de prejudicados nos dois Estados pelo desastre ambiental ainda são preliminares e desencontradas, já que utilizam critérios diferentes de medição.

A Defesa Civil de Minas Gerais, por exemplo, fala em mais de 1 milhão de pessoas atingidas. Para chegar a esse número, o órgão diz ter apenas somado a população de 35 municípios do Estado no caminho da lama.

O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, órgão vinculado ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos, afirmou que cerca de 500 mil pessoas tiveram o abastecimento de água comprometido em Minas e no Espírito Santo.

“Este é um levantamento que fizemos nos municípios que captam (ou captavam) água diretamente na calha do Rio Doce (nos dois Estados) e, com a lama de rejeitos, tiveram que interromper essa captação”, afirmou o órgão.

Já a Samarco afirmou que “tem cadastradas cerca de 1.300 pessoas diretamente afetadas pelo acidente com a barragem de Fundão”, nas cidades de Mariana e Barra Longa.

Ao notar a escassez de informações, um geógrafo paulista tomou para si a tarefa de contabilizar o impacto mínimo que o desastre causou nos moradores dos dois Estados que vivem próximo ao Rio Doce e a seus afluentes afetados. Sua estimativa é de que, inicialmente, cerca de 335 mil pessoas tenham sido diretamente prejudicadas pela lama que contaminou o Rio Doce.

“Eu fui bem econômico na estimativa, para ter um cálculo inicial. Usei bastante a expressão ‘pelo menos'”, disse Marcos Ummus, 35, à BBC Brasil.

Para fazer a estimativa, ele considerou apenas pessoas que vivem a em um raio de até 2 km do leito do Rio Doce e de seus afluentes afetados – os rios Gualaxo do Norte (que banha o distrito de Bento Rodrigues) e o Rio do Carmo. Seriam pelo menos 334.442 moradores de 40 municípios, de Mariana (MG) a Linhares (ES).

Ummus realizou o levantamento utilizando técnicas de geoprocessamento, análise geoespacial e dados populacionais do Censo 2010, do IBGE – o que reforça a ideia de que mesmo o número mínimo real de afetados pode ser bem maior.

Neste território, em contato direto com os rios, também estão a área protegida dos índios Krenak, três Unidades de Conservação de Proteção Integral (que não podem ser habitadas pelo homem, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais) e seis Unidades de Conservação de Uso Sustentável (que admitem a presença de moradores).

Perto da lama

Para o geólogo Jefferson de Lima Picanço, professor de Geociências da Unicamp, com o levantamento de Ummus “dá para começar a conversar” sobre o impacto da lama na região.

Picanço avaliou o estudo a pedido da BBC Brasil e disse concordar com os cálculos feitos para estimar o número mínimo de pessoas afetadas.

“O problema mesmo é a proximidade com o rio. Pessoas que vivem mais perto do leito, como comunidades ribeirinhas e pescadores, são mais sensíveis, porque vivem da água. E limpar esse sistema demora”, afirma.

“Mas o total de pessoas varia muito, porque depende de como cada pessoa está sendo afetada. A falta d’água, por exemplo, se estende por uma distância maior do que 2 km, mas também é um impacto direto.”

Foto: BBC Brasil

Ummus estima ainda que a área de espelho d’água afetada – a superfície dos rios que foram diretamente contaminados pela lama – seja de pelo menos 263,1 km², equivalente a quase a extensão total do município paulista de Santos.

Mas, para o geógrafo, um dos dados mais importantes do seu levantamento é a área estimada de planícies fluviais (várzeas) que foram afetadas pela lama: cerca de 283,79 km².

“São áreas mais planas, onde os rios perdem velocidade, o que favorece a o acúmulo de material da barragem”, explica. “Elas têm solo mais arenoso e, por isso mais permeável. São mais suscetíveis à contaminação de aquíferos subterrâneos (formações geológicas que armazenam água).”

De acordo com Picanço, a determinação dos elementos presentes na lama será essencial para saber, por exemplo, se aquíferos realmente podem ser contaminados nas áreas de várzea e qual será o dano causado às áreas de conservação que tocam o rio.

“A contaminação de aquíferos poderia acontecer e a situação é mais séria na bacia do rio Gualaxo do Norte, porque 60% do impacto está nessa bacia. No resto dos locais, o impacto é menor e há uma tendência da própria natureza de limpar um pouco.”

“Já as zonas de conservação atravessadas pelo rio vão ter problemas de assoreamento, deposição de lama nas margens, coisas do tipo. E ainda não sabemos que tipo de material que é. O que a gente imagina é que a mineração de ferro produz muito menos elementos nocivos do que, por exemplo, a mineração de ouro”, pondera.

Estudos conflitantes ainda geram a dúvida sobre o material que foi depositado nos rios pela lama. Análises de água e sedimentos feitas pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM), do Ministério das Minas e Energia, em parceira com a Agência Nacional de Águas (ANA), vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, afirmam que os níveis de metais pesados dissolvidos na água continuam dentro dos limites estabelecidos pelo Ministério da Saúde.

No entanto, um levantamento preliminar independente feito por pesquisadores ligados a universidades federais e ao Grupo Independente de Análise de Impacto Ambiental (Giaia) mostra índices de contaminação por arsênio, manganês e chumbo muito acima do permitido pela legislação brasileira.

Devastação

O coordenador-geral de Emergências Ambientais do Ibama, Marcelo Amorim, também avaliou o estudo a pedido da reportagem. Segundo ele, o Ibama chegou a considerar fazer uma estimativa da população afetada com base no censo do IBGE, mas a descartou porque “nem sempre conseguimos saber exatamente a população de cada parte do município”.

Em seu levantamento, Ummus utilizou os dados referentes aos setores censitários de cada área – as menores unidades territoriais estabelecidas pelo IBGE para coletar o Censo.

De acordo com Amorim, o Ibama calcula que a lama destruiu quase 1.469 hectares só nos primeiros quilômetros depois de ser expelida da barragem. “A força da lama foi maior nos primeiros 77 km do percurso e devastou totalmente a mata. Mas também afetou com força e sufocou a mata até os primeiros 100 km.”

Além disso, o órgão calcula que 770,23 hectares de áreas de preservação permanente tenham sido afetadas pelo desastre.

“Os primeiros rios atingidos eram menores, com menos volume de água. Por isso a lama extravasou bastante e se depositou nas margens. Uma vez no rio Doce, que é mais largo, a lama se encaixou no leito do rio e foi sujando a margem em vez de se depositar integralmente nela”, explica.

“No trecho inicial, a lama arrancou a vegetação e, se a cobertura foi de um metro ou mais, isso inibiu qualquer possibilidade de nascimento natural das espécies nativas e eliminou bancos de sementes.”

A partir do momento em que a lama se encaixou no leito do Rio Doce, no entanto, Amorim diz que o risco para a mata nas margens é menor.

“Neste caso, você não tem sufocamento da lama em cima do material. Você tem mudança de PH da água, mudança de acidez. A natureza nesses locais tem mais facilidade para se recuperar.”

Falta de dados

Para fazer seu levantamento, o geógrafo Marcos Ummus usou software livre e dados de IBGE, CPRM (Serviço Geológico do Brasil), Ministério do Meio Ambiente, ICMBio, Probio (Projeto Nacional de Ações Integradas Público-Privadas para Biodiversidade), IEDE-MG (Infraestrutura Estadual de Dados Espaciais de Minas Gerais) , IGAM (Instituto Mineiro de Gestão das Águas) e Instituto Prístino, que desenvolve pesquisas sobre conservação do patrimônio natural.

“Sou um cidadão, leio jornais e me preocupo com questões ambientais. Trabalho com geoprocessamento há uns 15 anos mais ou menos. Comecei a perceber que os jornais não estavam me dando informações suficientes para eu ter uma posição”, afirma.

A reportagem da BBC Brasil pediu estimativas sobre a população afetada também aos governos estaduais de Minas Gerais e Espírito Santo, ao Ministério do Meio Ambiente e ao Ministério da Integração Nacional, mas nenhum dos órgãos as tinha. A Defesa Civil do Espírito Santo não respondeu à solicitação de informação.

Em resposta à solicitação da BBC Brasil, a Samarco afirmou ter contabilizado 1.300 pessoas diretamente afetadas pela lama, apenas nos dois municípios que ficavam nas proximidades da barragem.

“Para levantar todos os afetados pelo evento nas demais localidades, empresa contratou a Golder Associates – consultoria de classe mundial, com expertise em engenharia, meio ambiente e emergências ambientais. A empresa se dedicará ao cadastro das famílias, à elaboração dos planos, gestão e supervisão das ações socioambientais que serão implementadas em todas as áreas atingidas pelo acidente nas barragens, em Minas Gerais e Espírito Santo”, disse a empresa.

A BBC Brasil entrou em contato com a Golder Associates em busca de estimativas mais abrangentes do número de afetados, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

Lama ainda escorre

Um dos fatores que torna mais lento o processo de medir a área e o número de pessoas afetadas, para Marcelo Amorim, é o fato de que o incidente continua em curso.

“Na perspectiva da emergência ambiental, o incidente ainda não parou, porque a fonte de lama não secou. A lama continua correndo, só não com aquela força, volume e densidade iniciais. Mas ainda pode interromper a fotossíntese e causar impacto no rio, por exemplo. Não é algo que se possa considerar normal e se permitir que continue”, diz.

O Ibama determinou que a Samarco apresente projetos para cessar o carregamento de lama da barragem para o rio. Uma das ideias, diz Amorim, é construir dois diques dentro dos primeiros 77 km após a barragem e criar um ambiente para que parte do material que compõe a lama se deposite e a água mais limpa siga rio abaixo.

“As pessoas já estão falando em tempo de recuperação, mas como falar em tempo de recuperação se o dano ainda não cessou? Se você ainda tem o carregamento de lama, precisa saber quando ele vai acabar. O impacto é contínuo. É como falar da reconstrução de uma casa que ainda está queimando”, afirma.

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