No ano passado, Raul Capistrano foi o primeiro aluno a entrar na sala para fazer a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e o último a sair. Ao lado de cada questão resolvida, ele escreveu o nome dos professores do TransEnem BH, responsáveis pelo seu aprendizado sobre o tema. Hoje, aluno do primeiro período de filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ele se emociona.
“O cursinho TransEnem BH me abriu as portas e eu me senti na obrigação de acertar todas as questões que tinham sido abordadas em sala. Consegui ser aprovado no curso que eu queria, no turno que queria e na universidade que eu queria”, conta Raul, que teve ainda como um dos incentivos para fazer o Enem o uso de seu nome masculino.
Raul é homem transexual e fonte de inspiração para outros 20 alunos e alunas travestis e transexuais que deram, no início desta semana, o primeiro passo para realizar o sonho de ingressar na universidade. Eles participaram da aula inaugural do TransEnem BH, um cursinho pré-vestibular gratuito voltado exclusivamente para este público.
Criado no ano passado, o preparatório conquistou um resultado de sucesso já no seu primeiro ano. Mesmo com aulas apenas aos sábados e em locais que não ofereciam estrutura adequada, nove dos 12 alunos chegaram a prestar vestibular. Além da aprovação de Raul na UFMG, foram comemoradas duas vitórias: a de um aluno no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG) e na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e de outra aluna na segunda chamada da UFMG.
Oportunidade
Adriana é uma das organizadoras do cursinho e professora de direito do trabalho da PUC Minas. A ideia de criar o pré-vestibular surgiu ao pesquisar as dificuldades da inserção de travestis e transexuais no mercado de trabalho. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% da população de travestis e transexuais no Brasil estão na prostituição ou ocupam postos de trabalho informal. “São pessoas que querem desenvolver outras atividades, mas não conseguem. Falta capacitação, porque elas não recebem incentivo da escola”, disse. “Criamos um ambiente que permita essa capacitação e dê a elas a possibilidade de entrar num espaço que deveria ser delas também, que é a universidade”, completou.
Em 2016, o pré-vestibular se expandiu. Os 20 alunos terão aula de segunda a sexta, das 19h às 22h30. “Nossa demanda foi superior ao número de vagas, mas não queríamos criar nenhum critério que excluísse mais do que as pessoas já são excluídas. Então, a seleção foi muito objetiva: por ordem de inscrição”, explicou Adriana. A estrutura também melhorou. O trabalho sensibilizou a Secretaria de Educação de Minas Gerais que decidiu emprestar uma sala da Escola Estadual Pedro II. A equipe de voluntários, além de professores e gestores, ganhou o reforço de um psicólogo, que também presta orientação vocacional.
Saiba Mais
Mas os organizadores querem agora recursos para conseguir custear material escolar e transporte dos alunos. Por essa razão, eles buscam empresas que queiram patrocinar a iniciativa. Além disso, eles elaboraram uma campanha de financiamento coletivo. Até o momento, foram obtidos cerca de R$ 2,5 mil, o que ainda é insuficiente. Contribuições podem ser feitas pelo endereçohttps://www.vakinha.com.br/vaquinha/transenem.
Superação
Os relatos de transexuais e travestis têm geralmente um ponto de convergência: a falta de estímulo com os estudos na escola tradicional. Ali, acuados pelo preconceito, sentam no fundo da sala e não se expressam. A autoestima se esfacela e muitos vivem quadro depressivo. A evasão escolar é, com frequência, a saída adotada. “O ambiente é muito hostil. Infelizmente, muitos professores usam de exemplos homofóbicos, transfóbicos e machistas para dar aula. É desestimulante. Não podemos nos expressar e tirar dúvidas sem sermos ridicularizados e zombados”, contou Raul.
Por isso, o TransEnem BH busca construir um ambiente que permita a recuperação dessa autoestima. Professores são orientados a se preparar não só tecnicamente, mas também para estimular a participação e respeitar a identidade de gênero de alunos e alunas. “Passei uma redação com o tema da transfobia no Brasil e antes realizamos um debate muito acalorado. Uma menina disse, então, que ia começar a escrever seu texto em lágrimas. Muitas vezes, falta espaço para que eles possam falar do próprio problema e serem ouvidos. O resultado da atividade foi muito positivo. Fiquei bastante emocionada”, conta Elisa de Oliveira, professora de literatura e redação.
O professor de história, Mário Pollastri, acrescenta que, quando os alunos superam os traumas do ensino médio ou fundamental, eles ficam mais à vontade. “Não vemos em cursinhos tradicionais o mesmo interesse que há nesses alunos. Eles trazem uma vivência bem diversa do que estamos habituados, o que faz com que as aulas se tornem um campo de aprendizagem tanto para eles e elas quanto para nós.”
Raul conta que passou a se interessar por todas as matérias: física, geografia, história, matemática. “Fiquei apaixonado por todas as matérias, cada semana eu queria ser uma coisa. Aprender é muito fascinante, e a escola tradicional fazia com que fosse desinteressante. No TransEnem BH, eu queria problematizar o conhecimento de todas as disciplinas, e assim me aproximei do curso que questiona tudo. A filosofia salvou minha vida.”
Nome social
Libernina Andrade, de 20 anos, saiu do município mineiro de Almenara, na divisa com a Bahia, para conseguir se assumir mulher em Belo Horizonte. Na cidade natal, ela vivia sem perspectivas devido ao preconceito e à relação complicada com a família. Hoje, após ter compreendido quem realmente é e recuperado a autoestima, sonha em se tornar engenheira ambiental ou engenheira química e vê no TransEnem BH um aliado. “[Isso] serve para a nossa vida. Quando cheguei eu era muito medrosa para dar minha opinião, mas os professores nos estimularam a realmente lutar pelos nossos direitos.”
O diploma, segundo Libernina, pode ajudá-la a superar a discriminação no mercado de trabalho. Seu último emprego foi como atendente de telemarketing, quando ainda se vestia com roupas consideradas masculinas. Depois, já teve a contratação negada várias vezes. “É complicado. Você faz as entrevistas e percebe que gostaram. Você tem as qualidades requisitadas. Aí quando apresenta seu documento com o nome masculino, pedem desculpa e falam que o meu perfil não era exatamente o que estavam buscando. É muito engraçado, para mim é um caso de transfobia.”
Em breve, ela pretende solicitar a impressão de uma carteira de identidade com seu nome social. “É apenas um dos direitos que conquistamos, mas ainda falta muito. Temos as obrigações sociais, pagamos impostos como todos, então exigimos a garantia dos direitos básicos.”
A adoção do nome social foi inclusive o que abriu as portas para Raul realizar seu sonho de ingressar no curso de filosofia da UFMG. “Eu só fiz a inscrição no Enem, porque foi aberta a possibilidade de fazer a prova usando o nome social. Não fosse isso, eu não teria feito, porque o constrangimento é muito grande.”