O Estado é um mal necessário. É impossível imaginar uma vida organizada em sociedade sem a presença dele. Por outro lado, os maiores abusos aos direitos e garantias individuais dos cidadãos são praticados por agentes estatais. Nessa categoria incluo não apenas os agentes do Executivo, mas também integrantes do Legislativo, Judiciário e Ministério Público.
Não se trata de uma peculiaridade brasileira. Montesquieu já havia percebido que os agentes estatais abusam de seus poderes e, por isso, criou a sua célebre teoria da tripartição dos poderes, por intermédio da qual o poder limitaria o poder mediante a distribuição das funções de administrar, julgar conflitos e legislar para órgãos diversos.
É preciso lembrar essa realidade quando se analisa o projeto de lei de abuso de autoridade recentemente aprovado pelo congresso, e que está em vias de ser sancionado ou vetado pelo presidente da república. É necessário superar o bordão “querem acabar com a lava jato”, pois isso mantém a discussão no plano mais raso.
A lava jato é apenas uma operação. O projeto de lei, contudo, tem aplicação muito mais ampla. Destina-se a trazer responsabilidade para aqueles que responsabilizam os outros. É interessante a gritaria que o projeto gerou por parte de membros do ministério público e juízes, que respectivamente acusam e condenam pessoas aplicando leis cujo conteúdo tem o mesmo grau de generalidade que o projeto que criticam.
As mesmas pessoas, no entanto, defendem as 10 medidas contra a corrupção e o pacote anticrime, que possuem previsões que conferem ao Judiciário e ao Ministério Público poderes incomensuráveis. Há dois pesos e duas medidas. Para o cidadão vale o rigor da lei. Para os agentes estatais, apenas as benesses.
É preciso notar, ainda, um aspecto relevante. É que, independentemente do conteúdo da lei, quem vai acusar e julgar são o Ministério Público e o Poder Judiciário. Será que essas instituições não confiam em seus próprios integrantes para aplicar a lei? Eu, como advogado, preciso acreditar que as decisões serão sempre justas, pois somente posso continuar a advogar confiando no bom senso dos promotores e juízes. Confesso, no entanto, que diante das reações das instituições de classe dessas categorias fiquei com minhas convicções abaladas. É difícil confiar em alguém que não confia em si próprio.