Um dos principais desafios que ainda precisam ser enfrentados pelas pessoas com autismo é o do preconceito e da desinformação que ainda envolvem o assunto. Um exemplo disso apareceu no debate sobre a lei estadual que foi sancionada no último dia 6, em São Paulo, que dá validade indeterminada a laudos médicos que atestam os diagnósticos do chamado Transtorno do Espectro Autista (TEA) e suas deficiências associadas. Essa lei chegou a ser vetada em fevereiro pelo governador Tarcísio de Freitas, com o argumento de que o autismo “poderia deixar de existir” em crianças, após passarem por um suposto “tratamento” – o que não é comprovado pela ciência.
Após ser muito criticado nas redes sociais pelo apresentador Marcos Mion (que é pai de um garoto com autismo), por outras famílias de autistas e por entidades de defesa dos direitos das pessoas com TEA, o próprio Tarcísio admitiu o erro e sancionou a lei, depois que o veto foi derrubado pela Assembleia Legislativa paulista, em 29 de março. Três projetos de lei semelhantes já foram apresentados na Câmara dos Deputados e estão em discussão nas comissões temáticas da Casa.
O episódio ilustra como a consideração do autismo como doença ainda é um dos principais mitos e distorções que grande parte da população tem em relação ao assunto. A psicóloga Ana Noriko Shiki (CRP 02/15853), professora e coordenadora do curso de Psicologia do Centro Universitário Tiradentes (Unit Pernambuco), esclarece que, apesar de necessitar um diagnóstico com profissional, o autismo não pode ser considerado como doença, mas como um distúrbio do neurodesenvolvimento que afeta, em diferentes graus, as habilidades sociais, de comunicação e comportamento. Diz ainda que não há um consenso sobre a causa específica, mas há diversos fatores que são apontados como facilitadores do desenvolvimento dessa condição, incluindo os genéticos e os ambientais.
Para ela, a sociedade atual é pautada em estereótipos e coloca o autismo em um “lugar” que diminui as pessoas com esta condição, o que acaba sendo um dos maiores erros ao lidar com o tema. “O próprio modo de que nos referimos a essas pessoas é limitante, os chamamos de ‘autistas’, mas eles não são apenas isso. Eles são Joãozinho, que gosta de dinossauro, ama dançar tal música, não gosta de ser abraçado e tantas coisas mais. Mas nós encapsulamos a pessoa apenas no diagnóstico. Isso limita as possibilidades da pessoa com autismo e do olhar da sociedade para ela”, lamenta a coordenadora.
Outra ideia que a sociedade mais atribui às pessoas com autismo é a que considera estas pessoas como “agressivas”, “temperamentais” ou “insociáveis”. Ana Noriko considera as generalizações como “questionáveis” e esclarece que, de fato, o autista tem dificuldades de comunicação e de fala, mas pode desenvolver as habilidades de comunicação próximas a de grande parte das pessoas, com a ajuda de profissionais especializados em áreas como neurologia, psicologia, fonoaudiologia, fisioterapia, terapia ocupacional e psicopedagogia.
“As pessoas com autismo podem apresentar maiores dificuldades de comunicar aquilo que pensam e sentem. Além disso, eles também podem ter algumas hipersensibilidades (sensoriais, auditivas, por exemplo) que os deixa mais vulneráveis a fatores externos. A soma desses fatores podem gerar maior resistência que poderá culminar em comportamentos indesejados socialmente. No entanto, vale ressaltar que eles precisam ser acolhidos nessas ‘entrelinhas’ e compreendidos para ajudar a sanar aquilo que está gerando o desconforto”, diz a professora.
Como lidar?
O Brasil ainda não tem uma pesquisa oficial consolidada sobre o autismo no país. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) incluiu questões relacionadas ao TEA no Censo 2022, mas esses resultados específicos ainda estão sendo apurados. No entanto, estimativas não-oficiais, baseadas em estudos periódicos do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), que é a agência pública de saúde dos Estados Unidos, apontam que os autistas brasileiros somam entre 1 milhão e 2 milhões de pessoas nesta condição.
A edição mais recente da pesquisa do CDC, divulgada em 23 de março, mostra que o TEA afeta 1 em cada 36 crianças americanas de 8 anos, o que equivale a 2,8% da população local nesta faixa etária. Mostra ainda que a incidência destes diagnósticos cresceu em relação ao último estudo, de 2018, quando a proporção de crianças autistas era de 1 em cada 44, e que esse aumento se deu mais entre crianças negras, hispânicas e asiáticas: foi de 30%, contra 14,6% entre crianças brancas. A agência americana conclui que esse aumento aponta para uma influência da desigualdade social no crescimento de crianças com autismo.
Para a professora da Unit Pernambuco, ainda falta mais conhecimento, esclarecimento e compreensão das pessoas sobre o autismo, o que também esbarra na disseminação de informações distorcidas. Ela alerta que, por falta de orientações corretas e ajuda especializada, muitas crianças com autismo acabam sendo diagnosticadas tardiamente e enfrentando dificuldades de adaptação na escola e em seus círculos de amizade.
“A grande dificuldade hoje se dá por informações partidas e fora de contexto disseminadas nas redes sociais que levam leigos e profissionais não especializados a ‘diagnosticarem’ erroneamente crianças. A família, por sua vez, ainda possui muita resistência em levar uma criança com sinais de autismo e para uma avaliação especializada, por saberem todos os estigmas sociais com os quais terão que lidar a partir de um possível diagnóstico”, diz Ana, concluindo que, com esses problemas, perde-se um grande tempo no cuidado precoce e no suporte à criança autista à sua família.
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